Às belas terras de Mafra chegámos por volta das 10 horas da manhã, recebidos por um clima agradável como um verão do Algarve. Por nós, aguardava uma simpática equipa de guias turísticos, que nos receberam de braços abertos, cheios de interesse para nos contar a história deste grandioso monumento, que se estendia à nossa frente com a Basílica ao centro, ladeada das duas torres sineiras e das duas alas do Palácio Real: a norte, a antiga secção do Rei e, a sul, a parte tradicionalmente reservada à Rainha, embora após a morte de D. Fernando II toda a família real tenha passado a ocupar o torreão sul, sendo o norte reservado aos visitantes de maior importância. Mafra no horizonte (fotografia de Dulce Carvalho) O Palácio-Convento de Mafra (fotografia de Catarina Costa) Começámos por nos abrigar na galilé da Basílica, em cujas paredes laterais se encontram catorze nichos adornados de estátuas em mármore de Carrara de autores italianos. As duas que ladeiam a entrada da igreja são as mais imponentes, foram executadas pelo grande escultor romano Carlo Monaldi e representam São Vivente de Fora e São Sebastião. Estátua de S. Vicente de Fora de Carlo Monaldi Estátua de S. Sebastião de Carlo Monaldi Saramago descreve-as no início do capítulo XXIII do Memorial: «À frente, por serem de maior grandeza corporal e portanto lhes caber justa capitania, vão S. Vicente e S. Sebastião, ambos mártires, embora do martírio daquele não se veja outro sinal que a simbólica palma, o resto são atavios de diácono e emblemático corvo, ao passo que o outro santo se apresenta na conhecida nudez, atado à árvore, com aqueles mesmos buracos de horríveis feridas, donde por prudência se desencaixaram os dardos, não fossem partir-se durante a viagem.» Segundo o nosso Nobel da literatura, em boa companhia estão São Bruno (cuja estátua em Mafra é da autoria de Giuseppe Lironi), São Bernardo de Claraval e São Bento (cujas esculturas são atribuídas a Giuseppe Rusconi), mas só na viagem que fazem de Itália para Portugal, porque, aqui chegados, foi cada um para o seu nicho. Do primeiro, diz Saramago que levou uma «vida austera, sábia e mortificada». Do segundo, que andou a «pregar cruzadas velhas e reunir cruzados novos». O terceiro foi «um santo dedicado ao trabalho da horta e ao cultivo da letra». Para o escritor, «Vêm os três juntos, talvez por parecenças de rosto, talvez porque as virtudes de todos, somadas, fariam um homem honesto, talvez por terem nos nomes a mesma primeira letra», como Baltasar Sete-Sóis, Blimunda Sete-Luas e o padre Bartolomeu Lourenço. Estátua de S. Bruno por Giuseppe Lironi Estátua de S. Bernardo por Giuseppe Rusconi Estátua de S. Bento por Giuseppe Rusconi Baltasar «é boieiro de uma das juntas que vão puxando S. João de Deus, único santo português da confraria desembarcada da Itália em Santo António do Tojal e que vai, como quase tudo de que se fala nesta história, a caminho de Mafra». A sua estátua, atribuída ao escultor bolonhês Agostino Corsini, encontra-se na galilé ao lado da de Santa Teresa de Ávila, de Carlo Monaldi, uma das «três graças preciosas» de que nos fala Saramago, sendo as outras duas «Santa Isabel Rainha da Hungria, que morreu na idade de vinte e quatro anos apenas, e depois Santa Clara», todas elas «mulheres muito apaixonadas, que em fogo interior arderam». Como nos ensinou a nossa guia e como escreveu Saramago, na viagem desde Itália até Portugal, todos estes santos de pedra foram transportados no seu carro, «deitadinhos […] em macio leito de estopa, lã e sacos de folhelho, desta maneira não se amarrota a prega nem se torce a orelha […]». Estátua de Stª Teresa de Ávila de Carlo Monaldi Estátua de Stª Isabel Rainha da Hungria Estátua de Stª Clara Depois de observarmos estas e outras estátuas, entrámos na Basílica. Pudemos admirar a beleza de uma arquitetura barroca baseada nas grandes igrejas de Roma, resultante do projeto do alemão João Frederico Ludovice (versão aportuguesada de Johann Friedrich Ludwig) e das ideias ambiciosas de D. João V, financiadas pelo oiro brasileiro. Lá em cima na cúpula, desenhava-se a pomba do Espírito Santo, que a cicerone nos disse ter 1,5 metros de envergadura. Basílica de Mafra (fotografia de Catarina Costa) Ouvimos falar dos seis órgãos de tubos que foram construídos no início do século XIX, no tempo em que D. João VI era Príncipe Regente, com o intuito de tocarem juntos no mesmo espaço. São exemplares únicos no mundo, tendo sofrido alguns restauros desde então, tanto mais que, com as invasões francesas, foram deixados ao abandono durante algum tempo. Atualmente, são utilizados para concertos anuais promovidos pela Câmara Municipal de Mafra. Os carrilhões (que incluem um total de 93 sinos) são outra das atrações deste monumento. Fabricados um em Liège e o outro em Antuérpia, nas mais conceituadas fundições da Europa, reza a lenda que o monarca teria mandado saber o preço das peças e, perante o chorudo orçamento que lhe foi apresentado, mandou encomendar logo duas, para que se não se pensasse que D. João V era algum unhas-de-fome. Ainda hoje os concertos de carrilhões fazem jus à reputação do rei absolutista, contando com a participação de carrilhanistas de todo o mundo. O programa Visita Guiada tem um episódio exclusivamente dedicado aos carrilhões de Mafra que pode visionar acedendo ao link em baixo. https://www.rtp.pt/play/p7378/e504978/visita-guiada. Um dos órgãos da Basílica de Mafra Sinos de um dos torreões de Mafra Passámos depois ao interior do Convento, onde visitámos uma parte da enfermaria, que estava dividida em três secções: a dos convalescentes, a dos noviços e a dos doentes graves. É única no seu género no contexto europeu e fez-nos pensar na triste situação daqueles a quem faltava a saúde num tempo em que a medicina tinha tão poucos recursos. Adjacentes a esta ala hospitalar estão algumas celas de frades, com a sua sobriedade conventual, os seus objetos de martírio e de meditação, que contrastam vivamente com o luxo e o glamour do Palácio Real. E foi esta zona que visitámos em seguida. É constituída pelos dois lados da fachada principal do monumento à esquerda e à direita da Basílica, abrangendo os dois torreões, onde se situavam os aposentos reais. O terceiro piso era a zona nobre e os restantes andares do palácio estavam reservados ao pessoal da Casa Real, abrigando as cozinhas e outras áreas de serviço. No andar nobre, a comunicação com os aposentos reais fazia-se através da imensa galeria principal, que se estende por toda a fachada do edifício. Passámos primeiramente pela Sala de Diana, onde admirámos a pintura do teto, da autoria de Cirilo Volkmar Machado, representando a deusa da caça rodeada de ninfas e de sátiros. Também o teto da Sala do Trono ou das Audiências estava decorado pelo mesmo artista e seus colaboradores, com uma complexa composição alegórica da Alta Providência, do Anjo-Custódio protetor do reino de Portugal, do grupo de «eclesiásticos beneméritos» e da sociedade civil e das belas artes. Pintura do teto da Sala de Diana por Cirilo Volkmar Machado Pintura do teto da Sala do Trono de Cirilo Volkmar Machado Fotografias de Catarina Costa As paredes, por seu lado, apresentavam oito painéis simbolizando as virtudes reais, quase todos da autoria do conhecido pintor António Domingos Sequeira. São elas a Perfectio, a Tranquilitas, a Docilitas, a Sciencia, a Generositas, a Concorditas, a Constantia e a Diligentia. No torreão norte, encontravam-se os antigos aposentos privados do rei de Portugal, que, depois da morte de D. Fernando, consorte de D. Maria I, passaram a albergar hóspedes importantes. Estes incluem o quarto de dormir, o quarto de vestir e o mobiliário de higiene como a cómoda-retrete, também designada como peniqueira. Nas salas seguintes, a das Descobertas e a do Destino, pudemos apreciar mais pinturas de teto de Cirilo Machado: a primeira representando cenas gloriosas do passado colonial português, nomeadamente o confronto entre Vasco da Gama e o terribilíssimo Adamastor, a descoberta do Brasil por Pedro Álvares Cabral e um retrato do Infante D. Henrique sustentado pela Fama; a segunda figurando um templo simbólico onde a Providência entrega a D. Afonso Henriques o «Livro dos Destinos da Pátria» e, em torno, se perfilam todos os reis da nação portuguesa até D. João VI. Pintura do teto da Sala das Descobertas por Cirilo Machado Pintura do teto da Sala dos Destinos de Cirilo Machado Na Sala de D. João V encontrámos uma galeria de retratos de D. João V e da sua família: a esposa, D. Maria Ana de Áustria; a filha primogénita, D. Maria Bárbara, a cujo nascimento está dedicado o convento de Mafra; o príncipe D. José, sucessor de seu pai no trono, e D. Mariana Vitória de Bourbon, a princesa espanhola com quem casou. Estão patentes também as pinturas do arquiteto João Frederico Ludovice e do Marquês de Pombal, o famosíssimo ministro de D. José I. Retrato de D. João V Retrato de D. Maria Ana Josefa Retrato de D. Maria Bárbara (autor desconhecido) Retrato de D. José I (autor desconhecido) Retrato de D. Mariana Vitória (autor desconhecido) Retrato de João Frederico Ludovice por Armindo Ayres de Carvalho (1956) Atravessando a galeria que dá acesso ao torreão sul, acedemos à chamada Sala da Bênção. Aí nos falaram sobre a grande pedra que sustenta a principal varanda do edifício, de onde o rei assistia a cerimónias religiosas e abençoava o povo. Saramago conta detalhadamente, no capítulo XIX de Memorial do Convento, o transporte deste megálito, que tem de medidas «sete metros, três metros, sessenta e quatro centímetros», respetivamente de comprimento, largura e espessura, e demorou oito dias a ser levada de Pero Pinheiro até Mafra, puxada por duzentas juntas de bois em «mais de vinte carros que levam os petrechos para a condução». Isto para já não falar dos trabalhadores envolvidos, entre os quais se contam, na ficção do Nobel da Literatura, «José Pequeno e Baltasar, conduzindo cada qual sua junta, e, entre o pessoal peão, só para as forças chamado, vai o de Cheleiros, aquele que lá tem a mulher e os filhos, Francisco Marques é o nome dele, e também vai o Manuel Milho, o das ideias que lhe vêm e não sabe donde. Vão outros Josés, e Franciscos, e Manuéis, serão menos os Baltasares, e haverá Joões, Álvaros, Antónios e Joaquins, talvez Bartolomeus, mas nenhum o tal, e Pedros, e Vicentes, e Bentos, Bernardos e Caetanos, tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino; Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, Uma letra de cada um para ficarem todos representados». Tanto esforço e de tanta gente anónima e desgraçada para uma pedra cujo tamanho, em nossas cabeças, imaginávamos ser de proporções colossais, mas que, à vista desarmada, não passa de uma mera trave de sustentação. Ficámos como Baltasar Sete-Sóis quando chega a Mafra e, comparando o reduzido megálito com o imenso projeto de convento, comenta: «Tão pequena»! A pedra foi demasiado grande e penosa para os heróis esquecidos que a transportaram desde Pero Pinheiro, mas muito insignificante para quem a coteja com o incomensurável edifício de que faz parte. Varanda da Sala da Bênção Junto à famosa varanda, encontramos uma dos mais importantes peças escultóricas retratando D. João V. Foi esculpida em mármore pelo italiano Alessandro Giusti e data de 1748. O monarca apresenta um ar imponente, «com couraça, envolto num manto de arminhos, segurando o bastão de comando e coroado de louros, como um moderno César». Continuando o nosso caminho, ainda passámos por várias outras salas de grande esplendor, como a da Caça, decorada com cabeças de animais embalsamados e objetos feitos com hastes de veados, e o Salão Amarelo, também conhecido por Sala da Música, que se tornou um lugar de eleição para a receção dos convidados quando, no tempo de D. Pedro V, o protocolo cortesão se aligeirou, prescindindo do beija-mão real. Mas a última paragem antes da pausa para almoço foi a cereja no bolo, a saber a magnífica Biblioteca do Palácio, casa de tantas obras (cerca de 30 000), mesmo daquelas perseguidas pela mão do Santo Ofício. Foi por salvaguardar volumes como alguns precisos incunábulos (obras impressas com tipos móveis até 1500), uma coleção de bíblias, a famosa Crónica de Nuremberga (1493), tratados proibidos de alquimia e a primeira Enciclopédia, conhecida como de Diderot et D’Alembert, que El-Rei adquiriu a alcunha de «protetor das artes e letras». Para ajudar a preservar as obras, os bibliotecários contam com a ajuda de uma colónia de morcegos que, todas as noites, caçam os insetos devoradores de papel. Depois do repasto, encaminhámo-nos para o outro lado do edifício, onde nos recebeu uma bela equipa de atores, os quais contariam em forma dramática a história do Memorial do Convento, dando vida às personagens com a sua fantástica atuação. E assim foi a nossa inesquecível viagem ao Palácio-Convento de Mafra. Junho 2023, enviado pela Prof.ª Ana Labisa, texto dos alunos Bernardo Ramos e Diogo Araújo, do 12.º F Por favor deixe este campo em branco Não perca as últimas... Endereço de email * Verifique a sua caixa de correio ou a pasta de Spam para confirmar a sua subscrição. Post Views: 134 Leave a Reply Cancel ReplyYour email address will not be published.CommentName* Email* Website Sim, adicionem-me à lista. Δ